ABRAXAS e o Gnosticismo
Publicado por Frater Basílides em Gnose · Sexta 22 Dez 2017 · 5:45

Essas pedras são de inestimável valor para sondar a psicologia gnóstica. Esses talismãs enigmáticos revelam o estado de exaltação que jaz sob a especulação da gnose, esse estado de ébrio extravio espiritual, em que toda palavra assume valor de rito; invocação estranha e paradoxal, um meio de infalível comunicação com o divino. Além do mais, essa promiscuidade de divindades invocadas, esse estranho acasalamento de palavras de origens várias demonstram um estreito parentesco da gnose basilidiana com os sistemas solares e astronômicos, o judaico e a religião egípcia. As cabeças irradiantes de homem, galo, leão, serpente, o açoite, Mitra fazem pensar nos cultos solares: Sírio, os sete planetas, a lua crescente, o Zodíaco revelam elementos astrológicos; o escaravelho, Ísis, Anúbis são de derivação egípcia; as palavras Sabaoth, Gabriel, Adonai denotam dependência ao judaísmo. O elemento cristão é o que menos transparece nessas manifestações de uma religiosidade mórbida; o cristianismo quase se sumia nesse oceano de variedades sacras, fundidas num vasto e ardente sonho de sincretismo.
Porém, para dar uma idéia mais precisa desses Abraxas, descreverei alguns, tais, quais se reproduzem na obra de Matter. Um desses representa, de um lado, um Pandemônio de quatro asas, com os ramos místicos e uma espécie de chave ou emblema de mistério, levemente indicados. A cabeleira é estranha; compõe-se de folhagem, de dois cornos, símbolos de Amon ( o Sol), e de sete raios de luz, figurando os sete planetas. O caranguejo da mão direita recorda a constelação homônima. A serpente que morde a própria calda, feita pedestal, e que encerra em si, ordinariamente, o nome de IAÔ, ou qualquer símbolo sideral, desta vez está sozinha. A imagem isolaga da serpente era claríssima para a inteligência do gnóstico. Do outro lado, está gravado um Harpócrates, símbolo da peregrinação do espírito, sentado no cálice de um Lótus, com o dedo na boca e um duplo açoite na mão. O valor simbólico desta pedra é notabilíssimo ( está na edição de Gronovius e das Geminae antiquae de Leonardo Agostini). Harpócrates é o Sol em seu estado de debilitamento, no inverno, quer dizer, a alma, ao findar sua carreira terrestre, no ponto de renovar-se ex-integro. O lótus, onde está sentada a divindade, é, concomitantemente, símbolo do Nilo e da vida, inexaurível nas suas alegrias, como a fonte do venerando rio.
Outro abraxas representa uma mulher, nua até a cintura, que parece implorar insistentemente, assinalado favor de um jovem de cabeça irradiante, o qual a ouve com evidente atenção. O simbolismo aí é claro; o indivíduo é o Cristo, o Hórus-Sol, a quem a alma, dolorosamente regressa dos sofrimentos do mundo, pede que seja reconduzida ao pleroma, de que se afastara. A mulher é a alma redimida e sua parcial nudez simboliza o seu parcial desprendimento da terra.
Um terceiro representa Harpócrates saindo do lótus, com a cabeça irradiante, circundado pela lua e duas outras estrelas. O reverso traz gravada a serpente mordendo a cauda. No círculo resultante estão palavras em hebraico. Sabaoth, Michael, Adonai, etc.; em torno, outras palavras de que se colhe esta legenda; ille (Ialdabaoth) rebellavit (sed) tu pater es nobis Abrasach; - Ele se rebelou, mas tu és para nós o pai Abrasach - (tu te manifestaste mediante o Logos unido ao nome de Jesus).
Em outro, enfim, se vê Harpócrates apontando para os lábios de onde saiu a revelação; tem na mão uma coroa, a coroa do triunfo para os pneumáticos, que a compreenderam sabiamente.
Outro abraxas, pertencente a coleção Denon (Matter t. II c. 1), representa, de um lado, Anúbis, guarda dos dois horizontes, inferior e superior, guia das almas nas regiões ultra-terrenas, com cabeça de cão (guarda), com o caduceu (Guia), com a palma. Do outro, um indivíduo nu, em que se figura a alma do defunto, com um cutelo na dextra, emblema do sacrifício, uma chama símbolo da purificação; tem na fronte o sinal da ciência dos mistérios, a que se deve o destino feliz do defunto, destino expresso por uma serpente (a vida que o Ophis-Cris comunicou aos pneumáticos), por uma cabeça de gavião, pelo Leão e pelo escaravelho.
Em outro, Anúbis pesa as ações da alma, figura num pássaro. Em outro, enfim, está escrito o nome de Judas (para alguns gnósticos, o único discípulo que compreendeu o mestre e ajudou a cumprir-se a sua obra) e figura-se um homem com a cabeça de cão, ao lado da qual vêem gravadas letras gregas que Matter interpreta como as iniciais desta frase: “Jesus Cristo, o Senhor Deus, Logos, tem sido para nós a vida e a palma da vitória”.
Todos esses Abraxas (é inútil exemplificar com outros) correspondem, assim, a um conceito fundamental. Querem, sob símbolos conhecidos de religiões diversas, indicar a evolução da alma que ascende, através da contemplação da vida misteriosa, ao seu completo renovamento.
Matter reproduz 102 abraxas da mais variada origem; mas todos concebidos segundo uma idéia uniforme. Eles são de grande auxílio para verificação das doutrinas gnóstica expostas pelos Padres da Igreja.
E. Buonainti – Gnose dezembro 1936